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A mostrar mensagens de janeiro, 2011

Solidão

Caminho devagar, diluindo-me na multidão de cores e cheiros da rua Nem mais, nem menos que outros, eu mesma Igual a eles. Olhos fitos num ponto do horizonte, que desejo alcançar a cada momento Porque só ele importa. Ali. Àquela hora. Nada mais. Um ruído, meio sussurro, meio estrondo, não sei, fez-me desviar o olhar Para uma porta. Ali, no meio, ignorada por todos os outros olhos que apenas fitam o seu ponto Porque só ele importa. Ali. Àquela hora. Nada mais. A porta é invisível , penso. A porta é invisível?, pergunto. Silêncio. Os ouvidos também fitam o ponto. Porque só ele importa. Ali. Àquela hora. Nada mais. Vou entrar, grito, num grito mudo para os ouvidos que fitam o ponto. E entro. E saio do outro lado, vendo a mesma rua, a mesma multidão, as mesmas cores. Cheirando o mesmo cheiro. E procuro o meu ponto. Não o encontro. Porque ele já não me importa. Ali. Àquela hora. Nunca mais. Estou livre para olhar em volta E olho. Com atenção. A multidão desfaz-se. Fica uma só pessoa. Uma co

Alienação

A minha avó tem oitenta e dois anos. Faz oitenta e três em menos de um mês. Como é normal nestas idades, padece de maleitas várias, umas mais impeditivas do que outras; a principal, extremamente dolorosa. Custa-lhe andar. Custa-lhe mexer os braços. Custa-lhe muita coisa. Ainda assim, a minha avó mexe-se. Faz a vida dela, todos os dias. Paga as suas contas. Gere a sua casa. Recusa muitas (demasiadas) vezes ajuda. Não é especialmente instruída mas faz questão de se manter informada: sabe o que se passa no mundo, no seu país, na sua rua, na sua família. No seu coração. A minha avó nasceu em mil novecentos e vinte e oito. Como tal, sabe o que é a guerra. Sabe o que é a ditadura. Sabe o que é não poder ter voz. Sabe o que é ter poucos ou nenhuns direitos. Sabe o que é voltar a tê-los. Sabe que lutar é difícil, duro, demorado, mas que dá frutos. Sabe que se é difícil ganhar direitos, pode ser muito fácil e rápido perdê-los. Sabe, por isso, o que é a cidadania, o dever cívico.  A minha avó

Vácuo

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Naquele café...

O café, que costuma acolher os novelos infindáveis das conversas de velhas senhoras, os silêncios de casais de muitos ou poucos anos, as bocas lambuzadas das crianças a quem as avós não sabem dizer não, tinha hoje outro público. Velhos, novos, assim assim, todos de cabeça erguida para a televisão pendurada na parede, com o fundo verde que é uma presença constante onde quer que se veja uma densidade tão grande de homens por metro quadrado. Mas o que me prendeu a atenção foi o casal adolescente que conversava e ria numa mesa, com o alheamento próprio que o amor e a novidade trazem consigo. Homens, sozinhos, a ver o amor de uma vida a rolar na televisão. Rapaz e rapariga, juntos, a viver o amor do momento. Mesmo que acabe amanhã. 

Cidade Devoluta

Cidade. Casas. Gente. Conversas de vizinhas. Vidas. Cidade. Casas com dono ausente. Mas ainda com gente. Lamentos de vizinhas. Vidas. Cidade. Casas que se desfiguram. Gente envelhecida. Lágrimas de vizinhas. Vidas. Cidade. Casas que se emparedam. Porque já não há gente. Nem vizinhas. Nem vidas. Susana Figueiredo, Janeiro/2011

Lisboa e Tu

Hoje partilhámos Lisboa. Hoje Lisboa partilhou-te comigo. Foi estranho ter-vos juntos. O meu amor eterno. A minha paixão mais recente. Ambos ali. Complementam-se, digo-te. As suas formas, a tua esqualidez, a sua luz, as tuas trevas. O seu esplendor colorido, O teu sóbrio recato. Lisboa. Dela brotam palavras, letras que me fervilham nas mãos. Sons, cheiros que me alvoroçam. A simplicidade que me tira o fôlego, que me trava o sangue. A exaltação. Tu. O teu profundo silêncio. As tuas muralhas, os teus caminhos sinuosos. Tu, que me exiges olhos, boca, pele, os seis sentidos, enfim. Tu, A complexidade que me dá a certeza de querer transpor as tuas paredes, percorrer os teus trajectos com a calma que uma luta requer. Lisboa e Tu. Numa tarde de Verão. Pudesse existir a perfeição de um momento e longe dela não andaria. Porque esta ficará certamente gravada, mesmo que as palavras se percam, no meu livro de memórias. Susana Figueiredo, Julho/1999

Inusitadamente...

Há prazeres inesperados... o melhor momento do meu dia foi sem dúvida os quarenta e cinco minutos que decorreram desde que entrei na auto-estrada seis até chegar a Valverde. Com a Catarina a dormir no banco de trás, o compasso da sua respiração pesada e o som das rodas no asfalto, pude ficar comigo e com os meus pensamentos, a apreciar a estrada e o breu da noite. Já mais perto do meu destino, tive que percorrer duas pequenas estradas ladeadas por sobreiros. A luz dos faróis naquelas folhas dá-lhes um ar quase etéreo, aprofundado pela ausência de tudo o mais à sua volta. De som. De cor. De gente. Um pequeno arrepio percorre-me sempre a espinha quando atravesso esta estrada, numa reminiscência de alguns filmes mais atemorizadores, mas reconforto-me por estar num espaço pequeno e quente, protegida de qualquer improvável acontecimento no exterior... falta-me sempre a coragem para parar o carro, sair e apreciar o momento. Mas sei que vou adorar o dia em que conseguir fazê-lo.

A janela

Da paragem de autocarro à minha casa são cerca de dez minutos a pé pela zona mais antiga de Queijas, que é habitada pela população idosa da vila. Há uma velha senhora que deve ter já muito pouca mobilidade e que vive num dos vários rés-do-chão por que passo no caminho. Essa senhora, de rosto afável apesar da possível doença de que sofre, gasta - pelo menos - os seus fins de tarde sentada ao pé da janela, a observar os que passam. São momentos tão mais breves quanto mais rápidas as passadas do transeunte. Mas, para ela, é a diferença entre a tristeza e a alegria, pois a velha senhora sorri sempre se olharmos para ela. E eu olho, porque uma das boas coisas da vida neste mundo-cão é receber um sorriso bondoso de um desconhecido. E retribuo o sorriso.

Solo

Passo as minhas mãos pela lisa superfície que é a tua alma Dela, sinto apenas o áspero roçagar da fina camada de areia que a cobre Da areia que esconde qualquer porosidade, qualquer imperfeição Como nada sinto, penso partir Mas um súbito e inusitado cansaço faz jazer o meu corpo sobre ela E escutar Apenas oiço um vago murmúrio, tão distante como as profundezas da terra Presto atenção Parece uma voz que me traz palavras sumidas E tambores E silêncio E novamente a voz, agora mais clara E silêncio. Ainda deitada, tento afastar a areia e percebo que o solo, apesar de endurecido pela seca se desfaz com a força dos meus dedos Lentamente... De gatas, raspo-o vigorosamente e tento escutar Apenas silêncio. Mas sei que não adormeci e que a voz é real Os tambores ainda ecoam em mim e abafam o insuportável som desse silêncio Continuo a escavar, freneticamente, agora com as mãos Sinto as pedras a cortarem-me os dedos e a terra a entranhar-se nas feridas Não me importo porque

Recomeçar...

Embora o meu ano novo comece a 7 de Outubro, quando completo mais um ano de vida e começo outro novinho em folha, não deixo de gostar da mudança de ano no calendário. Há sempre esperança no ar, mesmo nos momentos difíceis, e a sensação de uma agenda cheia de folhas imaculadas por escrever e ainda a cheirar a tinta. E o primeiro dia do ano é sempre um bom dia, calmo, sem pressas... ainda por cima, costumo começá-lo com os melhores dos amigos, a partilhar comida, risos, histórias e tempo. É bom, mesmo muito bom...